1898-11 de
dezembro: Notas Falsas. Boemia. Há poucos
dias um moço, figura simpática e saliente do meio literário curitibano,
pediu-me explicações sobre as palavras –Boemia, Boêmio– e eu prometi dá-las tão
completas quanto me fosse possível. Venho hoje desobrigar-me desse compromisso,
passando para aqui algumas notas ligeiras, apanhadas em uma brochura
estrangeira que se ocupa desse assunto. Na Literatura Francesa fala-se muito em
boêmio, e por tal forma que a palavra acabou por tornar-se a representante de
uma classe de pessoas no seio as sociedade parisiense. Os literatos daquele
país tomaram grande trabalho em discutir tal classe, que era uma modernice,
dedicaram-lhe romances, comédias, versos, artigos de jornais, com o fim único
de provar que a definição seca e vaga da Academia: -“Ter a vida de boêmio,
viver na vagabundagem, sem eira nem beira”, era falsa, porque, nesse caso, o
boêmio devia achar-se constantemente sob as vistas incessantes e cautelosas da
Polícia. Não foi difícil reduzir a inanidade aquela definição impertinente. A
Boemia tem uma linguagem especial, totalmente sua, tomada das palestras dos
ateliers, do calão dos bastidores,, das discussões dos gabinetes de redação.
Figuram nesse idioma inaudito todos os ecletismos de estilo, idioma onde o
gênero apocalíptico acotovela o discurso sem fim nem ligação, onde a
rusticidade da gíria popular alia-se a períodos extravagantes, saídos da mesma
fôrma de onde Cyrano tirava os seus rasgos cheios de espanholadas, onde o
paradoxo –filho querido da moderna literatura- trata a lógica e a razão como
Cassandra é tratada nas Pantomimas, onde a ironia tem a violência dos mais
enérgicos ácidos, e a destreza desses caçadores que matam um inseto pousado no
alvo, algaravia inteligente, embora ininteligível para os que não tem a chave
dela, e cuja audácia excede a das mais livres línguas. Esse vocabulário é o
inferno da retórica e o paraíso do neologismo. Ouçamos agora o que se diz e o
que se disse da boemia e dos boêmios. Diz Balzac: “A Boemia, que se deve chamar
a Doutrina do Boulevard des Italiens compõem-se
de moços de vinte a trinta anos (não mais) todos homens de gênio –cada um em
seu gênero- ainda não conhecidos, mas que se farão conhecer em pouco tempo, e
então serão distintíssimos. Na Boemia há diplomatas capazes de transformar os
projetos da Rússia, desde que sejam auxiliados pelo poder da França. Todos os
gêneros de capacidade e de espírito ai estão representados. Ela possui
escritores, administradores, militares, jornalistas... A palavra Boemia diz
tudo. Se ela nada tem, vive do que tem. A esperança é a sua religião, a fé em
si mesmo o seu código, a caridade o seu budget.”
Murger diz: “Para o leitor inquieto,
para o burguês timorato repetimos em forma de axioma: -A Boemia é o estágio da
vida artística, a porta aberta da Academia, do Hospital ou do Necrotério-
Acrescentamos que ela só existe e só pode existir em Paris.” Diz X. Aubryet:
“Como?! Porque há uma meia dúzia de papalvos ou de pretensiosos, que julgam
fazer bonita figura blasonando-se do pomposo nome de –boêmios- e cortam os
sapatos de propósito para que se tomem como o prolongamento dos heróis de
Murger, tornais a literatura inteira responsável por essa garotice?! Não
fecheis os olhos tão complacentemente: eu não chamo boêmio ao estudantinho que
deve cem francos ao seu alfaiate, chamo boêmio a esse esplêndido e majestático vivedor que não é literato e que sabe
despender cem mil francos por ano sem ter um sou de seu, chamo boêmios aos príncipes das finanças que se gabam,
com jactância, de reduzirem os seus clientes a miséria extrema...” A. Louchet
exclama: “...Chamam a isso ter vida de boêmio! Murger, que dizeis a este
respeito? A vida de boêmio, que eles não conhecem, é a vida da afeição e de
comunismo, nunca a vida de cinismo e de desespero.” P. Larousse diz em duas
linhas no seu Dictionnaire Complet Illustré: “Boêmio, sujeito que goza o
presente, sem importar-se com o futuro.” Eis satisfeito o meu compromisso.
Abordei um assunto ainda não tratado em nossa terra e ocupei-me dele como pude
e como sabia. Venham outros em seguida fazer mais amplo estudo sobre esse tema
tão interessante. A iniciativa ai fica. Hyalino.
(José Gonçalves de Moraes). 40/25/01.
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